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Building and Dwelling in the Zone

 

 Habitar e construir na Zona

Quem nos dá um padrão em absoluto pelo qual podemos organizar as medidas inerentes à natureza de habitar e de construir?
     
Martin Heidegger, Construindo, Vivendo, Pensando

Existem, na Europa, pessoas, famílias e crianças que vivem em esqualidez urbana, em miséria, em condições precárias, sob sombras de ilegalidade, mas que vivem somente a metros de ilhas privadas, opulentas e protegidas, dentro de muros de prosperidade e privilégio. As insinuações da pergunta de Heidegger debatem-se dentro de uma crise ontológica do urbanismo no Ocidente. Sob a luz da desigualdade social e espacial inumerável que caracteriza a paisagem urbana contemporânea – onde os bairros pobres, os guetos e as cidades de barracas se tornaram espaços aceites para a marginalizado “do outro” –, quais são as possibilidades de invenção de “um padrão” pelo qual possamos tomar a medida do habitar e do construir? O que significa residir e construir habitações  em tempos de globalização, numa sociedade pós-colonial que sofre transformações estruturais fundamentais, como consequência das migrações de massa, de reestruturações sócio-espaciais e urbanas, assim como de complexas reconfigurações de diferenças culturais? Que novas possibilidades ou problemáticas emergem quando esta pergunta é reencaminhada e re-articulada das margens ao centro, e não de outra forma? Se a arquitectura e o urbanismo podem aprender com Las Vegas, o que poderão aprender com Brixton, Sarcelles, Kreutzberg ou com a Cova da Moura?
Relacionarmo-nos com as cidades é invariavelmente uma pergunta pouco confortável sobre o que é a diferença cultural. Apesar de décadas de teoria, de discussões públicas extensas e de iniciativas políticas sobre a pergunta da diferença cultural em cidades, é relativamente pouco o que é conhecido sobre a dinâmica emergente das margens urbanas, dos chamados distritos de bairros pobres, como áreas proibidas das zonas urbanas, zonas que estão tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe do centro urbano.
Os modos dominantes de entender tais espaços complexos são ainda baseados numa sufocante infra-estrutura de teorias, histórias, imagens, políticas fracassadas e estatais e de intervenções policiais que são quase inteiramente cegas às transformações e às dinâmicas criativas desses espaços excluídos. Tais lugares ainda inspiram o medo, a suspeita e um desejo de disciplinar e controlar na mesma medida. Para muitos, são os buracos negros da modernidade, cicatrizes manchadas no corpo urbano.
Na maioria invisível “aos cidadãos” do centro urbano, esses espaços e as suas populações-alvo parecem existir num estado do purgatório urbano, submerso sob um embutido de indiferença, negligência e negação. Num contexto pós-colonial, onde os fluxos migratórios do Sul global transformaram cidades ocidentais em mosaicos multiculturais, esses espaços submersos tendem a ficar visíveis pelo caminho complexo, no qual os contos “de etnicidade'”e de (des)ordem urbana  são alterados por representações de distúrbios, crime, desvios e transgressões nos meios de comunicação social.
Num ambiente onde certas comunidades, particularmente os grupos migratórios, são  sujeitas a ideologias de marginalização e distorção urbana, apresenta-se uma necessidade urgente. O que é necessário é uma crítica das fundações epistemológicas da forma como pensamos nas cidades e na vida urbana no Ocidente.
O pensamento urbano tem de se abrir, e alargar os seus horizontes, a uma perspectiva da diferença e do Outro. Para realizar isto, a história do Outro tem de ser incorporada e escrita no coração da história do urbanismo. Os estudos do racismo e “o paradigma das relações de etnicidade” não cobrem a totalidade da experiência urbana negra e migratória. Os emigrantes não são somente vítimas passivas. Histórias de construções comunitárias; a criação e a “recriação” das culturas, artes e práticas criativas; a construção e a desconstrução do ambiente construído e das paisagens urbanas e a sua relação com a diáspora, imigrantes e comunidades desfavorecidas: todas precisam de ser hoje urgentemente reconsideradas pelos urbanistas. Estas conexões cruciais – a relação e a contribuição destas comunidades na construção de paisagens urbanas, assim como a produção do espaço – foram das últimas a serem investigadas pela teoria urbana, e necessitam urgentemente de ser repensadas.
Por outras palavras, estas comunidades têm de assumir uma posição central em qualquer esforço de regeneração urbana da cidade, como as Olimpíadas de 2012 em Londres e a regeneração das periferias de Lisboa.

Outros Urbanismos
De Toxteth a Brick Lane, de Sarcelles a Lisboa, a diáspora e os emigrantes participaram na criação dos seus próprios mundos urbanos; os seus próprios urbanismos, que existem no seu interior e que são entrelaçados num contexto mais abrangente de sociedade. Não há uma experiência única da vida da cidade. Até agora, esses urbanismos emergentes – subalternos, suburbanos, excluídos – foram basicamente entendidos pelo prisma ideologicamente carregado do gueto. Este conceito limitou a nossa compreensão, não só pela forma como esses espaços são produzidos, mas também por aquilo que eles representam e significam; por outras palavras, a sua complexidade e diversidade. Esta mudança de compreensão não é somente académica ou conceptual. Tem implicações fundamentais na forma como espaços migratórios e de diáspora negra, ou os 'guetos', são mapeados e enquadrados dentro de políticas e intervenções do “mundo real”.
O objectivo não é a busca de uma teoria "migrante" da cidade per se, ou alegar que a experiência migrante é completamente diferente das outras experiências urbanas. Mas há um argumento de discórdia a explorar no que se pode aprender sobre a natureza geral do urbanismo, no Ocidente, analisando as particularidades das experiências dos migrantes urbanos, traçando a história das suas lutas e das práticas espaciais na cidade, e o modo como se relacionam com outras batalhas: por justiça, direitos humanos e conforto quotidiano, tais como moradias decentes. A cidade é o lugar onde, para muitas pessoas, são expressas as contradições da vida moderna. Chegando à cidade, a experiência migrante espera exaltação e liberdade, mas também rejeição e, muitas vezes, o racismo. A experiência migrante diz-nos que a cultura urbana não é monocultural. Existem «outras», múltiplas e poliglotas experiências de vida urbana atrás do olhar tradicional sobre o Urbanismo.

Urbanismo global “na zona”: de Jacarta a Lisboa
Estas reflexões sobre as cidades e a experiência de migração urbana em lugares tão variados como Jacarta, Brixton e Lisboa emanam do facto de a imigração urbana ter sido desenvolvida como um fenómeno cultural e político global.
A relação entre culturas urbanas de minoria como a cultura negra e o urbanismo nunca foi tão paradoxal e aguda como nos dias globais e mediáticos da saturada sociedade actual.
Culturas urbanas migratórias – o estilo, as modas, a música, as artes, as produções culturais – são, em muitos lugares, uma força motriz, entre outros factores, no assim chamado “renascimento” da cultura em áreas metropolitanas – Nova Iorque, Londres, Paris, Tóquio, etc. As noções do urbano “cool” e “hipness”, tal como na idade do jazz, estão a ser redefinidas em volta do tráfego global da chamada étnica migratória, ou cultura negra: alimentada pela subida fenomenal do hip hop, de músicas do mundo e de outras formas populares de entretenimento em cidades de todo o mundo. Ao mesmo tempo, as comunidades de imigrantes e de diáspora nessas mesmas cidades à volta do globo estão a viver em condições contínuas de esqualidez, de pobreza extrema e de marginalização social e económica.
O léxico global usado para descrever, mapear e conceptualizar a condição urbana migrante é deprimentemente familiar: bairros pobres, ghettos, barrios, favelas, barracas, banlieues, espaços marginais, ocupações, bairros de realojamento camarário, prisões, zonas de renovação urbanas, no go areas, sítios ambientalmente insalubres, bidonvilles, badlands etc.: a lista é interminável.
Esta situação paradoxal é evidentemente mais desafiada na relação do urbanismo com formas de cultura negra, que é a situação das comunidades de descendência africana residentes em cidades da Europa e da América do Norte.
Este paradoxo de urbanismo negro reflecte uma profunda esquizofrenia e um processo dialéctico da incorporação do que pode ser chamado como '“blackness”' no urbanismo contemporâneo. O conceito de “blackness”, neste sentido, pode ser visto como a construção cultural, social e política de uma identidade que se desenvolveu através de muitos locais de deslocamento no assim chamado Atlântico Preto (“black Atlantic”, Gilroy) da diáspora africana. Efectivamente, a diversidade cultural urbana foi historicamente produzida entre dois signos principais. Por um lado, o negro é visto como um factor de redenção, uma potencial fonte da renovação espiritual da decrépita e decadente civilização “branca”.
A presença e a influência negra na cultura – como no renascimento do Harlem, o entusiasmo passageiro da Negrophilia em Paris nos anos 30 e a ascensão do hip hop global desde os anos 80, etc. – são vistas como uma fonte vital de energia e novidade, uma força motriz do modernismo cultural. Por outro lado, a negritude é muitas vezes interpretada como um sinal de privação e de decadência no ambiente urbano. As noções de crime e criminalidade, doença, degeneração e  miscigenação associaram-se em várias alturas da história da presença negra nas cidades. “Isto é o medo de um planeta negro”, como nos diz o grupo de rap Public Enemy: a negritude como um sinal de desordem urbana e caos, um precursor de morte e destruição.
Entender a natureza complexa da expressão do urbanismo negro e da experiencia migratória, na minha opinião, significa entender e reflectir a natureza produtiva desta contradição. Pode ajudar a explicar, por exemplo, a atracção simultânea e a repulsão do corpo urbano negro na cultura contemporânea e a dinâmica paralela do “voo branco”, em guetos da cidade , ou das “vizinhanças negras” da vida suburbana e o influxo de  jovens apreciadores do jazz urbano, profissionais e criativos dessas mesmas áreas designadas como marginais e urbanas. A maior parte do fascínio pela  gentrificação é baseada neste impulso contraditório, mas, ainda assim, esse fenómeno recebeu uma atenção escassa na literatura da gentrificação. Por outras palavras, a força produtivamente destrutiva e destrutivamente criativa do urbanismo negro tem um efeito tangível na formação e na produção do espaço urbano.
A maior parte dos estudos da condição urbana negra concentrara-se no aspecto dionisíaco ou destrutivo da natureza desta relação – a dor, a autodestruição e o fascínio do gueto –, negligenciando, de uma maneira não-dialéctica, os aspectos generativos e produtivos desta experiência urbana. Ao mesmo tempo, deve entender-se que os elementos destrutivos habitam sempre agora e, em alguns contextos, fornecem o alimento e a força dinâmica produtiva da condição urbana negra. Este urbanismo pode, então, ser visto como um sinal esquizóide que persegue e habita dentro do urbanismo e do mito da “cidade branca”. É “o fantasma na máquina” que é capaz de induzir a máquina urbana em momentos de esgotamento paranóico (distúrbios, pânicos morais causados por crimes, etc.), ao mesmo tempo que reconfigura essa máquina para novos modos de inovação, criatividade e expressão (artes e cultura, arquitectura, etc.).
Enquanto é perigosa a comparação das experiências de grupos étnicos, como as comunidades negras, com a mais larga experiência urbana de grupos migratórios, há, de muitas formas, pontos comuns interessantes que podem ser estudados, mapeados e comparados. Muitas destas comunidades submergidas, marginalizadas, e também subvertidas, tendem a habitar espaços comuns e paisagens onde a modernidade parece ter-se decomposto ou, até, falhado. De facto, este livro é uma tentativa de mapear, explorar e lançar algumas perguntas urgentes sobre a natureza da habitação, para além de incorporar esses espaços complexos, contraditórios e emergentes, que muitas vezes existem nas margens e nas sombras da vida urbana no Ocidente.

Ameixoeira: Paisagem da Modernidade Fracassada
Voltamos, então, ao questionamento crucial de Heidegger sobre a ordem urbana das coisas. Qual é a natureza dos espaços onde as comunidades de imigrantes se encontram, e como é que eles mesmos se relacionam com os espaços da modernidade urbana? Como podemos tomar a medida da natureza da habitação e incorporar os espaços representados neste livro? Cada um pode, talvez, especular que, não havendo uma resposta, pelo menos essa pergunta possa ser feita a partir do desaparecimento rápido das barracas na Ameixoeira, no não-lugar do contexto urbano que rodeia a cidade de Lisboa. As construções abarracadas da Ameixoeira, como quase todas as favelas, estão fora do mapa.
As favelas são espaços invisíveis, perdidos, submersos e liminais. Para a maior parte dos lisboetas, elas só existem nos títulos osbscuros dos jornais e nas reportagens das notícias da televisão sobre as ondas de crime e a ameaça à população decente que é por eles propositadamente emanada. Na Ameixoeira há uma nova construção de habitações comunitárias que foi construída originalmente para fornecer alojamento a baixo custo para jovens portugueses e famílias de baixo rendimento. Mais recentemente, esses desenvolvimentos foram ocupados por imigrantes e comunidades ciganas e africanas (Cabo Verde, Angola, Moçambique), os quais foram realojados dos bairros de barracas adjacentes. Há uma grande presença da actividade de igreja evangélica nessas áreas carentes. A ausência quase total e até o abandono por parte do estado é muito evidente na Ameixoeira. A impressão geral do espaço é de desolação e isolamento; uma espécie de solo improdutivo de modernidade fracassada. A Ameixoeira  é um não-lugar  e não tem quase nenhuma afabilidade urbana – parques, praças, espaços públicos abertos, etc. A sua  geografia social compõe-se de um número de enormes “blocos de barreira” densamente arranjados em linha – avenidas lineares – em cima de uma colina. Os espaços sociais principais (ao contrário dos espaços públicos) são uma série rígida de ruas lineares e avenidas. No final da rua principal existe uma capela enorme, monstruosa, que aponta para o céu, provavelmente construída em  homenagem  à capela de Le Corbusier em Ronchamp. Ela foi originalmente construída como um centro cultural da comunidade cigana, mas, desde então, foi basicamente abandonada e raramente usada. A população, especialmente os jovens, andam em grupos na rua, sentam-se, observam e esperam. Observam-se uns aos outros? Esperam por quem? À espera de quê?
O tempo parece ter sido congelado na Ameixoeira. Nada acontece, nada se move. Tudo é plano, estático e imóvel, e sente–se que há uma abundância de espaço. O espaço domina tudo. Os espaços ficam sobrepostos uns aos outros em linhas lineares; parecem não levar a lugar algum e não gerar nenhuma actividade, à parte as crianças que jogam na rua. O tempo e o espaço estão fora da ordem neste lugar: “o tempo é fora da união” (Derrida a citar o Hamlet de Shakespeare). Este não é o tempo de Lisboa, ou mesmo o tempo “urbano”. Tem a sua própria lógica indecifrável e hermeticamente selada, assim como a sua cronologia. Concorrentemente, o espaço é sobredeterminado, sobreposto, dobrando-se em si mesmo. Tudo o que cada um pode fazer em tal lugar é esperar e olhar. Há pouco material espacial, temporal ou cultural que possa formar trajectórias sociais coerentes e significativas. As navegações urbanas são inúteis neste espaço, porque não há nada para navegar de x para y. É um urbanismo no estado de bio-política, projectado para conter ocupantes não-móveis, dóceis, não-cidadãos. Se o tempo está “fora da união” e o espaço é dobrado em si mesmo, para onde se pode ir? O que se pode fazer? Nada, zero, terminalidade. O produto final é, inevitavelmente, uma população virada sobre si mesma. A violência reside aqui como o idioma da mediação social em tal situação: a negação da negação. Paradoxalmente, isto consequentemente pode ser um meio de fuga, um modo inconsciente de resistência, o único modo de resistir ao regime urbano do estado bio-político.
Os espaços na Amexoeira têm, para eles, uma qualidade surreal. Os edifícios são basicamente novos, datando de 2002, mas são monótonos, sem rosto e com uma escala não-humana. É como se as lições dos fracassos das torres neo-corbusianas em periferias urbanas desoladas de Londres ou Paris não tivessem sido aqui aprendidas. Por outras palavras, as enormes barreiras de blocos foram construídas e isoladas espacialmente do resto da cidade e das comunidades pobres, maioritariamente imigrantes que foram colocadas ali, quase à toa, aparentemente com muito pouco suporte social ou cultural, e abandonadas à sua sorte. Em comparação com os bairros de barracas degradados de que muitas dessas comunidades escaparam, este espaços deveriam supostamente representar um paraíso da modernidade e da mobilidade na ascendência social. Mas não: esses lugares, que são vistos como o porto da modernidade, vieram para representar uma distopia pós-moderna: falta de sentido de comunidade, habitações pobres e construções degradadas, alto nível de criminalidade, divisão da comunidade, competição e antagonismo, morte dos espaços públicos; a litania habitual de “crimes contra a urbanidade” que foram cometidos por arquitectos zelosos e planeadores cínicos de cidades desde os anos 50. É como se o fantasma de Le Corbusier tivesse sido deixado à solta na cidade e tivesse ocupado exuberantemente o espaço, exigindo a sua vingança em cidades por todo o mundo, que abraçaram estes lugares, para depois abandonarem cruelmente as suas visões de ordem urbana e perfeição.

Underconstruction: a fenomenologia dos bairros de barracas

Os bairros de barracas não são homogéneos. São povoados por indivíduos, bem como por comunidades. Contêm muitas culturas, identidades e até atitudes diferentes em relação à questão de se viver em barracas. Muitos sonham partir; no entanto, outros vêem nas barracas um porto seguro. Muitos moradores dos bairros de barracas ocupam vários espaços e identidades, entre a favela e a cidade. Alguns residentes têm famílias na cidade (o centro de Lisboa) e passam muito tempo por lá. A separação entre o bairro e a cidade é artificial, fluida e movediça. Os moradores das favelas são urbanistas, bem como residentes nas barracas. Algumas favelas são mais bem organizadas do que outras. O Talude e a Cova da Moura – dois do bairros mais conhecidos – são de uma escala, ordem e permanência inteiramente diferente, dentro do tecido urbano, em relação a lugares como a Quinta da Vitória e o Fim de Mundo, espaços em processo avançado de serem destruídos pela política de renovação estatal.
Os bairros de barracas são zonas intermediária, e ocupam um espaço impossível entre a cidade e a periferia. São assembleias espectrais de pessoas, ferro, betão armado e sonhos. Os moradores das favelas enfrentam mais do que um caminho: um caminho leva à cidade, o outro leva ao mar ou ao aeroporto. As favelas são, ao mesmo tempo, estações de saída e pontos de entrada. São uma espécie de heterotopia, um espaço não classificável que não está em nenhum mapa. O mapa nesses espaços não é o território. Esses são espaços que desafiam a classificação e que resistem a entrar para o mapa porque estão a desaparecer, e a sua arquitectura temporária e estrutura social significam que estão num modo constante da auto-transformação.
Há pelo menos duas forças de destruição criativa e de criação destrutiva que funcionam como linhas de força nas favelas. Uma é interna: os moradores das barracas são criadores de formas que mudam. Vivem adaptando-se constantemente à estrutura das suas casas, em resposta às mudanças das condições ambientais e sociais. Outra linha da força é externa: as barracas nunca poderão ser planeadas para a estabilidade, porque são construções ilegais. Existem oficialmente fora do mapa e a sua posição na ordem territorial é ambígua, para dizer o pior. Elas ocupam uma zona de “vida a nu”, sem posição legal e direitos, mas, ao mesmo tempo, estiveram presentes na paisagem urbana portuguesa durante mais de trinta anos. Como cidades de barracas, estes espaços estão sempre “em demolição”. A ameaça da extinção paira constantemente por cima deles, e as suas estratégias, tácticas e modos da habitação são em parte determinados por esta realidade externa.
Será inimaginável considerar ou reflectir até que a resposta à pergunta de Heidegger possa ser encontrada, ou, pelo menos, procurada num lugar como a Cova da Moura, uma das maiores favelas da Europa? Na Cova da Moura e arredores, que nasce durante os anos 70 e 80, em menos de trinta anos mais de dez mil homens e mulheres, maioritariamente das ilhas africanas de Cabo Verde (mas também do Norte de Portugal, de Angola, da Guiné-Bissau, de Moçambique e da Europa de Leste), construíram uma cidade ilegal numa das áreas suburbanas de Lisboa. Uma grande parte da propriedade é privada, e uma pequena parte é terra comum ou pertence a uma instituição de solidariedade erguida pelos residentes. Há ruas, lojas, bares, uma biblioteca e uma escola. Uma emergente e subversiva forma urbana resolutamente pós-colonial está em construção ali. O processo doloroso e confuso de mapeamento, construção e habitação num espaço tão impossível esteve em marcha durante mais de trinta anos.
É apropriado, nesta conjuntura, revisitar as questões de Heidegger, tal como este livro tenta fazer à luz de espaços como a Cova da Moura e de outras construções urbanas periféricas. Podemos considerar que estão a desenvolver-se formas de luta, construção, criatividade e habitação nesses locais, perante obstáculos impensáveis, permitindo-nos pelo menos abordar a questão com vigor e esperança renovados.

Plataforma
A cidade e o direito a habitar
Se se procura aqui lançar um olhar sobre o que é fazer cidade e de que forma esta se encontra em permanente construção, será antes de tudo necessário precisar que o próprio conceito de cidade não deixa de ser um termo de certo modo ambíguo. É, com efeito, um conceito de natureza física, que evoca uma certa densidade de habitat e uma dominância do construído sobre o não-construído, mas é simultaneamente um conceito de natureza imaterial, na medida em que se refere a um conjunto de relações sociais que fazem da cidade um ambiente único e bem distinto de tantos outros lugares.
A cidade é, provavelmente, uma das mais complexas e fascinantes realizações humanas. E o edificado habitacional é, sem dúvida, uma das principais matérias-primas de que sempre foi composta, assim como de certa forma a satisfação de habitação sempre foi uma das necessidades que nela se tentou suprir. Todavia, num mundo actualmente dominado pela influência do pós-fordismo e da globalização, o direito à habitação para todos é hoje um direito ferido de morte. E o actual panorama habitacional português é, talvez, um retrato exemplar de um desequilíbrio económico e social que assola toda a Europa.
Em Portugal, centenas de milhares de famílias vivem em deficientes condições de habitação. Existe quase um milhão de fogos sem água canalizada, esgotos, electricidade ou instalações sanitárias. Existem dezenas de milhares de pessoas em habitações precárias ou abarracadas. Existem 325 mil fogos degradados e sem condições mínimas de habitabilidade. Há mais de meio milhão de casas sobrelotadas e mais de três mil sem-abrigo. Porém, existem 544 mil casas vazias. Para as encontrar, basta andar nos nossos centros urbanos, erguer os olhos acima do nível térreo e ver as suas janelas emparedadas. Não obstante, grande parte das famílias tem dificuldade em encontrar casa para arrendar, recorrendo assim à compra de habitação, endividando-se, porque os salários médios dos trabalhadores são incompatíveis com o custo da habitação no mercado imobiliário, e afastando-se cada vez mais do seu local de trabalho, situação que contribui para o despovoamento dos centros urbanos e para o agravamento dos problemas de tráfego, dificultando a vida de quem todos os dias acede às cidades. Perante as dificuldades, são geralmente as populações mais desfavorecidas, mais idosas e com maior número de filhos que, apesar de pagarem as rendas mais baixas, sofrem os revezes das faltas de condições de habitabilidade. Na maior parte das vezes são os imigrantes e os jovens que pagam os preços mais altos por uma habitação, suportando valores de renda excessivos e inflacionados. 
Em Portugal, apesar de 73,4% das casas serem de habitação própria, esta situação é fruto de um dos maiores rácios de endividamento da Europa, para além de resultado directo do esforço financeiro dos pesados empréstimos de 30 a 50 anos contraídos pelas famílias para a sua aquisição. O custo médio de construção de uma habitação em Portugal ronda os 600 euros por m2, mas o seu valor de venda especulativo chega facilmente aos 2.600 euros por m2. O ritmo frenético da nossa indústria da construção cresceu durante as últimas três décadas a uma taxa superior a 20% ao ano, estimulando o aumento do número de casas, mas não garantindo o acesso de todos a uma habitação. Não existindo qualquer regulação pública do mercado imobiliário, fica sistematicamente impune a especulação desenfreada e o abuso urbanístico.
Quando nos aproximamos das realidades concretas produzidas por todos estes desequilíbrios, encontraremos sempre um modelo de desenvolvimento urbano que negará invariavelmente quaisquer valores universalistas, fomentando, alternativamente, a criação de uma ideia de cidade de produtos, composta de elementos e tecidos soltos, e instalada num território cortado por vias de comunicação.
Estejamos em Lisboa, Londres ou Paris, as imagens que veremos far-nos-ão sempre lembrar que estamos sempre perante o mesmo problema, quer identifiquemos códigos e culturas urbanas específicas, quer encontremos situações de uma notável e perturbadora similitude.
O empenho e a participação da Plataforma Artigo 65 neste livro, que se debruça sobre os urbanismos injustos que se constroem nas margens da sociedade de hoje, advêm da urgência de uma sensibilização pública para com as graves carências habitacionais que assolam actualmente as nossas cidades; acima de tudo, pretende ser um contributo para que o direito à habitação seja finalmente um direito consensualmente reconhecido.

Miguel Graça e François Pechereau
Plataforma Artigo 65


ARQUIPÉLAGOS – Leituras cruzadas da identidade do território

Pensar na cidade exposta em Underconstruction é pensar num organismo vivo e complexo, numa Lisboa periférica, de referências vagas, onde se inscrevem ritmos de uma escala pequena e densa, própria de lugares povoados. Bairros que resultam da auto-organização de comunidades com estruturas sociais próprias e que, vistos do céu, desenham uma espécie de arquipélagos que se destacam pela suas formas orgânicas.
Estes territórios questionam as noções de continuidade e de ordem subjacentes à cidade moderna; são pré existências fora do contexto, estruturas informais que, do exterior, impedem que se lhes pressinta a ordem. Os mapas dos bairros do Alto da Cova da Moura e da Quinta da Vitória tornam visíveis os fluxos, os lotes e o tecido construído inscritos numa cidade que se transformou à sua volta; representam lugares à beira de serem destruídos ou absorvidos.
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Mapa 1 | Descobrimos, por entre a urbanidade massiva dos blocos habitacionais do bairro da Portela, o Bairro da Quinta da Vitória, um aglomerado de casas térreas, já parcialmente demolido, onde se distingue o traçado estreito das ruas e a massa irregular e desorganizada das suas casas. A altura dos edifícios envolventes é uma presença permanente, racional e austera a dominar o bairro, denunciando a sua estranheza.
O mapa alisa o contraste de alturas e revela a inexistência de um traçado gerador do bairro, sendo o todo uma assemblage de casas que se lêem como quarteirões imensos, deixando claro que, estruturalmente, este permanece enclausurado, como um obstáculo na comunicação com a envolvência. Este mapa é o registo de um estado provisório do crescimento da cidade e, ao mesmo tempo, uma metáfora da coexistência de estratos temporais, social e espacialmente contraditórios.

Mapa 2 | Avistamos ao longe o bairro do Alto da Cova da Moura: construções irregulares, profusão de formas aparentemente sem regra a trepar a encosta. Entramos cruzando uma via rápida, limite distinto entre o bairro e a envolvência. A rua principal, de orientação norte-sul, organiza um percurso inclinado até ao topo da colina. À medida que percorremos o bairro, vamos descodificando a sua estrutura, reconhecendo os seus marcos. Cada casa é um caso. Algumas ficam na memória, cores fortes, formas compactas, saliências, varandas, marquises, construídas de betão, tijolo e vidro. Visitámos a Associação Moinho da Juventude, biblioteca, creche, cantina e sala polivalente, palco de actividades variadas. Espaços de cariz social que seriam exíguos noutro contexto, mas que, aqui, são plenamente aproveitados e usufruídos.
O mapa da Cova da Moura revela uma malha urbana relativamente hierarquizada e, nalguns pontos, entrelaçada com a envolvente; pese a sua organicidade, podemos ver na definição clara das ruas uma rede de acessos perfeitamente conformada, testemunho da organização de uma comunidade estruturada.
Os Bairros da Vitória e da Cova da Moura resultaram da necessidade de as pessoas terem a sua habitação própria; nasceram a partir da unidade mínima que é a casa e não a partir da definição prévia dos percursos e dos espaços públicos, sendo lugares de abrigo para os seus habitantes e lugares de referência, muitas vezes não vivida, para outros habitantes da cidade.

O terceiro mapa representa o bairro da Mouraria, parte do centro histórico da cidade de Lisboa, que teve origem na ocupação de um antigo arrabalde, fora das muralhas da cidade, pelos Mouros vencidos na Reconquista Cristã, em meados do século XII. Foi um território marginal até à implantação de vários palácios a partir do século XV, os quais potenciaram a diversidade social dos seus habitantes. Ruas tortuosas, pátios e becos, como extensão natural das casas exíguas, foram, e são, locais de encontro; mas, mais do que isso, são os canais que ligam e inscrevem o lugar “Mouraria” na estrutura mais vasta da cidade.
A Mouraria persistiu no tempo, porque conseguiu gerir duas escalas: a pública – a rua (liberdade) como pólo estruturante da escala privada – a casa (necessidade). Os lugares sobrevivem na medida em que exprimem uma solução de ocupação suficientemente flexível e eficaz para um território. A cidade periférica é ainda um sistema aberto e tem o desafio de conseguir gerir territórios de géneses diferentes. Poderemos ler no passado uma projecção do futuro?

Ana Jara e Lucinda Correia para Arteria

 

REDESENHANDO OS LIMITES
LISBOA PÓS-COLONIAL E OUTRAS FORTALEZAS EUROPEIAS NA PÓS-PÓS-MODERNIDADE

No chamado mundo pós-moderno, um mundo em que os limites entre disciplinas, géneros e discursos artísticos, o popular e o erudito, se terão, pretende-se, esbatido; um mundo em que as fronteiras entre nações e identidades, entre o “dentro” e o “fora” são descritos como sendo porosos, e em que se celebra a mestiçagem cultural, outros limites e interdições parecem persistir ou regressar sob forma renovada. Viveremos um mundo pós-pós-moderno, ou estaremos perante o regresso da modernidade?
À semelhança dos muros e fortificações em torno de continentes e países – a “Fortaleza Europa” e o muro que divide os Estados Unidos do México –, assiste-se ao reforço crescente das fronteiras entre o social e o artístico, sob a vigilância atenta  tanto dos cientistas sociais – com a sua suspeita tradicional da volatilidade, imprecisão e irrealismo das linguagens artísticas –, como de artistas, curadores e críticos, estando estes ansiosos por manter o seu campo demarcado de questões políticas e sociais, receando também que estas possam contaminar as suas intenções estéticas puras. A viragem cultural – associando estreitamente a poética e a política dos fenómenos culturais, questionando a vigilância disciplinária e disciplinadora dos núcleos duros de áreas de conhecimento e poder, e os diálogos interdisciplinares que daí decorreram – parece estar a esgotar-se. Simultaneamente, o nacionalismo e as identidades em torno da diferença religiosa, a par de outras formas de distinção, parecem recrudescer, tendência reforçada não pelo «choque de civilizações», mas antes pela ameaça da implosão do sistema financeiro e económico global.
Pese embora este redesenhar das fronteiras disciplinares, um consenso inesperado surgiu nos últimos anos. Se os cientistas sociais parecem, pelo menos em Portugal, desconfiar crescentemente de questões de multiculturalismo e de diferença racial e étnica, as práticas artísticas e os discursos em torno da arte como que partilham esta posições, se bem que por razões distintas, recorrendo, embora, a um argumento idêntico: a desconfiança perante o menor indício de “correcção política”.
Por detrás do dissenso aparente, surge uma outra abordagem consensual: a universalidade seja das ideias de cidadania, seja dos critérios artísticos, partilhando ambas as disciplinas de uma certeza implícita – a da superioridade europeia ou ocidental, por muito que as abordagens pós-coloniais tenham tentado questioná-las.
É evidente que as coisas são mais complexas do que este argumento parece dar a entender. A diferença e o multiculturalismo continuam a ser um tema recorrente, frequentemente sob a forma de discursos oficiais sobre questões “interculturais” ou de “gestão de conflitos”, quase sempre com laivos paternalistas, ao postular que deve ser dada voz aos que dela são destituídos. A mercantilização da diferença é outro campo florescente (mas durante quanto tempo, haverá ainda que perguntar), com o seu investimento em “expressões” de presumida hibridez que ignora outras formas complexas de identificação que não podem ser subsumidas sob o lema – para usar um exemplo familiar – de Lisboa como uma cidade “crioula” ou “multicultural”. O que pode corresponder ao postular de intenções piedosas relativamente ao proverbial respeito europeu pelo Outro, mas que, ao fazê-lo, ignora os contextos assimétricos que postulam e definem a “diferença”, ou determina quem são aqueles que, tendo “cultura”, devem tolerados.
Não se trata de questionar a multicultura (Gilroy) efectiva da Europa, a não ser que esse reconhecimento leve a ignorar outras barreiras surgidas no seu espaço pós-colonial, barreiras essas suscitadas pela crescente precariedade do trabalho, bem como por outras questões sociais emergentes. Contudo, este reconhecimento não pode levar a que o racismo e outras formas de discriminação, em que o factor económico é apenas um entre vários, passem a ser tidos como meramente secundários.
Embora as imagens recentes da Grécia contemporânea  – questionando aquilo que alguns europeístas ainda gostam de encarar como o lugar das “origens” ou “raízes” do velho continente – apresentem uma familiaridade gritante com as dos banlieues franceses exibidas em 2005, não devemos proceder a comparações simplificadoras. Com efeito, ambos os acontecimentos exigem uma abordagem diferenciada, que não iluda as questões étnicas e raciais nestes tempos pós-pós-modernos. Todavia, o facto é que os ataques e a invasão de edifícios públicos, tais como universidades e escolas, a par de outros espaços, incluindo a invasão de propriedade privada – enquanto elementos mais “visíveis” desses acontecimentos que não podem, em ambos os casos, ser reduzidos ao seu impacto espectacular –, requerem uma abordagem mais complexa de um vasto conjunto de fenómenos com que as sociedades modernas se defrontam na Europa contemporânea, a que os modelos sociais herdados não conseguem dar uma resposta adequada.
O mesmo se aplica ao discurso político. O cosmopolitismo foi tradicionalmente associado a uma forma específica de se imaginar o espaço, ou seja, a cidade como o lugar “civilizado” dos intercâmbios democráticos, das diferenças negociadas em torno de uma cidadania partilhada. Mas as tensões nossas contemporâneas não podem ser subsumidas ao slogan “todos diferentes, todos iguais’, segundo uma suposta dialéctica do “Mesmo” e do “Outro”, dialéctica essa que ignora não só os complexos processos de identificação existentes, mas também a dissensão que aqueles que  pretendem “viver com a diferença”, em termos efectivamente democráticos, têm de enfrentar.
Mas como praticar o cosmopolitismo, se a cidade persiste em criar barreiras entre aqueles que pertencem e os que dela são excluídos? Se os bairros lisboetas tradicionais têm vindo a acolher imigrantes recentes, estes também são rapidamente imobilizados em territórios específicos, como o Martim Moniz, a Praça de S. Domingos, os Restauradores, algumas partes de Alfama, antigo gueto mouro e judeu. Algo que testemunha o carácter sempre multicultural da cidade; tanto os seus momentos mais tolerantes como racistas.
Mas, por sua vez, aqueles que vivem há mais tempo em Portugal e cujos filhos já nasceram em Lisboa parecem ter sido relegados, banidos, para não-lugares, os banlieues, lugares de ostracismo, bairros sociais que fornecem a matéria-prima que apimenta as notícias sensacionalistas que os repórteres gostam de inventar em  torno da criminalidade, violência e diferença. E assim se desvia uma classe média entediada e empobrecida, sobretudo durante o pico do tórrido Verão lisboeta, das suas preocupações sociais. A “maioria” pode encontrar um modo de compensar as suas frustrações, convencendo-se dos seus costumes “superiores”, da “civilização europeia” que as “minorias étnicas” ou os imigrantes não partilham. Ao mesmo tempo que vibram ao ritmo do kuduro e de outras sonoridades africanas ou crioulas em concertos ao ar livre durante as festas da cidade, os “indígenas” lisboetas parecem ver com desconfiança, quer a invasão de lugares de ócio, sobretudo por parte de jovens negros, predominantemente masculinos, como sucedeu com o célebre arrastão que nunca existiu (www.eraumavezumarrastao.org), quer a ideia de que viver com a diferença implica o questionamento de paradigmas herdados e que determinam quem pode fazer parte da nação, da Europa e do Ocidente.
Serão a mestiçagem e a hibridez um modo de negar ou recusar as fronteiras efectivamente impostas àqueles que os discursos acerca da ‘diferença’ insistem em segregar através de subtis práticas de exclusão?
Será a cidadania, enquanto forma de garantir direitos iguais para todos, um modo de assegurar a igualdade efectiva, nomeadamente àqueles que querem ser incluídos, apesar da ligação persistente à sua diferença (re)inventada – recorrendo a símbolos de culturas negras globais, incluindo gíria, indumentária e cabelo, do streetwear aos dreadlocks – , em última instância porque se sentem indesejados? Note-se que estes símbolos também são apropriados por jovens ‘brancos’, o que nos diz muito acerca de formas alternativas de convivialidade (Gilroy), para além de políticas oficiais em torno da “diferença”.
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Os espaços agora ocupados pelos bairros sociais – os chamados “bairros problemáticos”, numa tradução literal da expressão francesa, onde “imigrantes de segunda geração” (mais um galicismo) vivem predominantemente, coabitando e interagindo com populações pobres e brancas – encontram-se demarcados por uma linha anteriormente traçada pela antiga Estrada Militar, construída para conter os invasores franceses, durante as Guerras Napoleónicas.
Mas, paradoxalmente, os mesmos bairros descritos e discriminados como guetos resistem a esse rótulo excessivamente familiar, ao recorrer às suas próprias tradições, incluindo as encontradas localmente, apontando assim para as interdependências inevitáveis das histórias (pós)coloniais, apesar e para além da sua violência intrínseca. Assim, a “casa portuguesa” de triste memória – fado a que a minha geração não pode deixar de associar à atmosfera autoritária e repressivamente pequeno-burguesa do Portugal colonial e pré-democrático – surge sob novas roupagens, em perspectivas e justaposições inesperadas.
E isto aponta para outras estórias, para além da célebre narrativa da proverbial tendência portuguesa para a mestiçagem, consequência inevitável de qualquer cenário colonial, a par de todos os tipos de medidas mais ou menos rígidas de segregação, distintamente introduzidas consoante contextos geográficos e históricos diversos.
Parece também sublinhar as negociações tensas bem conhecidas daqueles que habitam a linha a demarcar o que é ainda definido como nacional (portugalidade) e transnacional (europeu).
As culturas negras, a presença africana (embora esteja a falar-se maioritariamente de populações nascidas em Portugal), são bem-vindas em Lisboa desde que sirvam à mercantilização da cidade como espaço cosmopolita global, justapondo o exótico ao familiar, como sucede com o kuduro Luanda-Lisboa, crescentemente popular em Londres. A música e a nomenclatura dos Buraka Som Sistema constituem, assim, uma presença eficaz a garantir a vitalidade de tais empreendimentos e experiências, facilmente cooptáveis por interesses económicos – embora também lhes possam resistir. Se o fado – música nacional por excelência desde o final do século XIX, a era da invenção das tradições  (Hobsbwam/Ranger)  – é crescentemente entendido como uma forma híbrida de música, ao mesmo tempo que mercantilizada como uma manifestação exótica de música do mundo, ele continua a ser encarado como uma manifestação da lusofonia. Pesem embora a mescla de origens africanas com sonoridades brasileiras e as viagens transatlânticas, o mar português resiste ainda a ser “negro”, de acordo com outras narrativas ainda presentes nas histórias do passado imperial português.

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Haverá outros modos de imaginar o tempo e o espaço como alternativa aos entendimentos que, apesar das proclamações da porosidade de fronteiras e disciplinas, insistem em fazer perdurar a separação entre os que podem pertencer (ou os que só o podem parcialmente), segundo procedimentos de vigilância que definem os limites territoriais a ser habitados? Como desfazer o nó apertado das narrativas ainda consensuais acerca da ideia da Europa e das suas nações? Como questionar barreiras e suspeitas? Talvez tentando quebrar, persistente e teimosamente os limites, questionando os discursos que legitimam a segregação da diferença sob diferentes estandartes disciplinares e disciplinadores.
Lugares abandonados, bairros destruídos como os que são apresentados neste livro servem, assim, menos para estimular uma meditação sobre a ruína, o carácter transitório da natureza humana universal, tal como enfatizado pela alegoria barroca (Walter Benjamin), do que para apontar para os trânsitos de um mar menos português do que negro ou pardo (Vale de Almeida). As casas abaladas pela vontade de modernizar retêm vestígios e fragmentos de vidas, com as suas aspirações por realizar, mas não menos vividas, testemunhando dessa forma o modo como influenciaram e foram influenciadas pelo espaço urbano que não pode ser reduzido a uma cosmopolis clássica.
O espaço contemporâneo, pós-colonial, resiste; e, por isso, reclama formas mais diversificadas de cultura, encaradas mais na sua plena modernidade e menos no seu exotismo de culturas negras globais, sejam elas vernaculares ou de vanguarda.
A vida quotidiana não tem de ser o terreno exclusivo das ciências sociais, nem a parte entendida como o domínio dos discursos artísticos. Ambos têm de ser encarados nas suas tensões e conflitos produtivos na Europa pós-colonial, nomeadamente em países que, como Portugal, construíram a sua identidade nacional em torno de uma suposta excepcionalidade na história universal, papel esse que não impediu a subalternização do país em contextos locais e globais.
Num momento em que o redesenhar de fronteiras parece ser a estratégia mais eficaz, projectos artísticos como o presente obrigam-nos a considerar a complexidade das interdependências e dos encontros, com exigências e aspirações diversa, dependendo das experiências quotidianas de todos aqueles que aspiram a uma vida melhor, apesar das restrições e desigualdades económicas crescentes.

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